Parte Final

A chuva passou e vocês estão encharcados. As roupas de lama. O corpo de sangue. A alma de medo. E a mente de lembranças ruins.

Tudo transcorria bem. Em poucas horas, uma comitiva real gloriosa atravessaria os portões de Donatar, capital do reino de Ludgrim, e vocês desfilariam nas ruas como heróis, acompanhados de tambores e clarins. A noite chegava, mas os sonhos é que partiam.

Durante a travessia de um charco, cavaleiros sem cores ou bandeiras investiram sem aviso. Tragicamente, muitos heróis lutaram até cair. Covardemente, muitos heróis fugiram até sumir. Desesperadamente, uma maga enfrentou até vencer. Tempestades repentinas, enxofre e demônios que atravessam portais de fogo. Derrotar os inimigos era impossível, estavam claramente em vantagem e eram muito poderosos. Vocês davam-se satisfeitos por estarem vivos!

Nem todos. Joaquina desapareceu, Oberyn e Bonnie recuaram e contornaram o campo de batalha pela floresta, Lezard carregou Noah no lombo do cavalo até as árvores, e Anya, Markas e Terry conseguiram fugir em meio ao caos criado pelos poderosos pergaminhos mágicos. Marroar, Murim e Thalles foram mortos pelo frio aço do inimigo. A lembrança dos golpes, do sangue jorrando e dos corpos caindo sem vida nas águas pútridas atormentará vocês pelo resto de suas vidas. Nunca é fácil presenciar o assassinato de um amigo que lutou lado a lado muitas batalhas, e a quem se devia a vida. Os próprios cavaleiros que formavam a comitiva deram suas vidas por vocês, poucos escaparam.

Fragmentados, escondidos na floresta, levou horas até que conseguissem se reunir novamente. O medo impedia que vocês se movessem, que gritassem uns pelos outros, os cavaleiros inimigos poderiam ouvir. Mas aos poucos, cautelosamente, vocês foram se reencontrando. Sorrisos de alívio contrastavam com lágrimas de tristeza por aqueles que perderam naquele dia.

Perdidos em uma floresta numa noite sem lua, em um reino estrangeiro, sem nenhum tipo de mapa e correndo o risco de serem caçados. O último a juntar-se a vocês foi Andraviel, capitão da comitiva. Suas outrora belas vestes verdes e brancas acompanhadas de um sol vivo ao centro estavam rasgadas, imundas, irreconhecíveis, e ele com certeza carregava mais cicatrizes agora. Ele chegou ate vocês sozinho e precisou de poucas palavras para explicar que não reencontrou nenhum de seus soldados no caminho.

O destino os deixou sozinhos somente para encontrar quem já não tinha companhia há décadas…

Brisa quente sopra seu rosto. Som das árvores ao vento e canto dos pássaros chega aos seus ouvidos. O calor do sol abraça seu corpo com vitalidade. Cheiro de mato, de flores silvestres. Na boca, gosto de água quando se tem sede.

Você abre os olhos. Uma planície verde surge diante de você como ondas no Lago Denégrio. Ao fundo, montanhas azuis e seus picos brancos. Atrás, um pequeno bosque, árvores espalhadas, pequenos animais. Ao lado, um riacho pedregoso sossegado. Árvores aqui e ali nessa planície infinita. Você está sentado em uma grande pedra, capaz de acomodar vinte pessoas, mas apenas um homem lhe faz companhia.

- Bem-vindo, meu filho. - ele disse em voz macia, acolhedora e segura.

Você não sentiu vontade perguntar nada. Estava tudo tão bom ali, e o senhor ao seu lado lhe parecia tão íntimo quanto seu próprio avô. Se lhe perguntassem qual a aparência do homem que estava ao seu lado, seria incapaz de responder. Não parecia ter nenhuma e ter todas ao mesmo tempo. Tinha certeza que já era um senhor de idade, apenas disso.

Uma voz ecoou baixinha, muito distante, de forma estranha: Heróis...

Gosto de sangue veio até a sua boca e você começava a ficar confuso de onde estava.

- Sinto muito por trazer-lhe tão cedo, meu filho - disse o senhor - Você realmente merecia retornar para casa e mostrar ao seu pai o caminho da paz. Detesto quebrar as promessas... dos outros.

Você olhava ao redor, confuso. Heróis... justiça. Aflição começou a te atingir intensamente - era como se por mais que respirasse ar não entrasse em seus pulmões. O senhor continuava parado ao seu lado, e você não conseguia dizer uma palavra.

Heróis merecem... justiça. Quem era você e o que estava fazendo naquele lugar? Estaria sonhando? Era real demais para ser um sonho e fantástico demais para ser real. A voz ecoava vinda das montanhas, alta e compreensível. Heróis merecem ter a justiça.

Cheiro de lama e terra revirada das profundezas invadem suas narinas. Dor se alastra por seus membros, órgãos e cabeça e o som deixa lugar apenas para aquela voz misteriosa. Frio te envolve como a própria... morte.

Heróis merecem ter a justiça.

- Me perdoe, meu filho - o senhor olha diretamente em seus olhos, tem pesar nos olhos dele.

Heróis merecem ter a justiça!

Você conhece essa voz, nunca se enganaria. Lezard. Você abre os olhos e o elfo dourado está diante de você. Seu corpo está estirado no chão de folhas secas, no meio da floresta, e uma noite muito escura te faz companhia. Não é possível mover músculo algum, mesmo o ar recusa a entrar em seus pulmões.

- Noah, acorde! Por Crisagom, aguente firme! Você não pode morrer assim! - o elfo esbraveja. Curioso, um ser que vive quase um milênio revolta-se com a morte?

- Está bem... - você responde - Está tudo bem... é a vontade dos deuses... Eu estou com os deuses agora...

Lezard Elanor fica ali, ao seu lado, olhando nos seus olhos minuto a minuto até que tudo que te restasse fosse somente a escuridão.

Anya, Terry, Bonnie, Oberyn, Joaquina, Lezard, Andraviel e Markas. Vocês caminham juntos, lentamente e fatigados. As únicas montarias que lhes restaram servem agora para aliviar a carga dos seus ombros. Andraviel e Terry conseguiram localizar, com alguma dificuldade, o Norte, para onde estão seguindo agora. Qualquer ruído suspeito lhes desperta a atenção e vocês param até terem certeza de que não são mais inimigos – cavaleiros, animais selvagens, mais demônios…

A hora mais escura da noite chega, e uma densa neblina os envolve. Vocês prosseguem mais um pouco e a parte densa da neblina se mantém abaixo de suas cinturas. A outrora bela floresta de Ludgrim agora é um pântano apavorante.


Anya senti arrepios profundos, e flashes dos pesadelos recorrentes que tem tido lhe veem a mente. Mas ela percebe que pior está Markas. O meio-elfo está gelado, trêmulo, sua respiração está curta e os olhos arregalados. Desconfiada, Anya examina seu pupilo a procura de ferimentos que ele não tenha notado, talvez ele esteja entrando em choque.

Mas não, Markas não está ferido. Está experimentando as mesmas sensações de Anya a um nível muito mais intenso. Tão intenso que ele está perdendo o contato com a realidade. Já não responde mais as perguntas que lhe são feitas. Ele se vira para vocês e diz quase como um sussurro:

- Vocês estão ouvindo isto também? Esta voz…

Ele caminha, a passos muito lentos, numa certa direção.

Markas só para de andar quando alguém de fato o impede fisicamente. Ele não responde a Anya, mas é fácil descobrir a direção pelo seu caminhar. Vocês apuram os ouvidos, mas escutam apenas o som da floresta. Não há voz alguma.

Mas não demorou para descobrir o chamariz de Markas. Lezard, o mais a frente do grupo, percebe algo adiante, escondido entre os troncos e a folhagem das árvores. Ele avança vários passos e cruza alguns arbustos...



Uma cabana, perdida no meio da floresta, construída de madeira. Parca fumaça escoa pela chaminé desaparecendo metros acima na escuridão da noite, portanto, habitada. Lezard chama seus companheiros. Markas é mantido sob vigilância, mas forças invisíveis parecem guiá-lo para a cabana. Seus olhos estão perdidos deste mundo e seus passos são frágeis, como se a cada metro pudesse desabar no solo.

A neblina está mais fria nesse lugar, e vocês todos sentem uma forte e estranha sensação de perigo.

Vocês discutem entre si. Atritos internos após uma derrota são, infelizmente, comuns.

Quando Terry começa a evocação discreta de seu feitiço - se agachando, passando a mão rente ao solo lentamente e pegando uma ou outra folha caída - vocês instintivamente fazem silêncio. Não os surpreende muito, vocês já viram esse mesmo rastreador evocar este feitiço natural antes. O sacerdote Lezard aproveita o momento se concentra na dolorosa técnica de expansão de karma. O fluxo forçado do mana percorrendo seu corpo pode fazer os órgãos falharem, mas você tolera bem este ritual.

No silêncio que segue, vocês voltam a reparar na floresta a sua volta novamente. É como usar um escudo de espelho, podendo confundir e camuflar tanto vocês quanto o inimigo. As copas das árvores balançam ao vento, folhas despencam ao solo. Aves e insetos noturnos piam as vezes. Isso vocês já ouviam antes, mas... tem algo a mais nisso. Um som que não tinha antes.

Crek... crak...

Terry mantem-se imóvel e avulso ao som, está concentrado na mesma posição, quase deitado. Tem algo se aproximando de vocês, por onde vieram. A tensão faz suas pupilas dilatarem e os pulmões segurarem o ar. Armas preparadas, lâminas lentamente retiradas da bainha. Um vulto surge entre os arbustos, cautelosamente espantando os ramos das plantas e evitando barulho até que... ele para. Menos de dez metros separam vocês. Seus corações batem mais rápido, até que seus cérebros disparam: ele está nos observando! Tarde demais. O vulto se move e se revela a vocês. É Thalles!

Terry no mesmo instante termina seu encanto e o resultado é um tanto perturbador: ninguém passou por esse lugar há pelo menos dez dias!